quinta-feira, 23 de julho de 2015

Breve história de um encontro





A gata. Primeiro era na piscina do condomínio que ela ficava. Era arisca. Vizinha dava ração. Minha mulher passou a ter dó. E eu só de olho!

Minha mulher viajou nas férias e eu fiquei em casa. Fui me sentindo só e abandonado e me vi espelhado naquela situação da gatinha. Dei leitinho uma vez e, pronto, não saiu mais da nossa garagem. Dormia em cima do carro. Afiava as unhas nos pneus. Um dia, trouxe um filhote preto para o quintal de casa, escondido. O único que sobrou da ninhada. Os outros, pelo que fiquei sabendo, um vizinho deu sumiço. Um dia, enquanto eu estava saindo de casa, o gatinho correu na direção oposta à minha, tentando entrar pela porta de vidro da sala. Foi uma cena pavorosa. O bichinho socando a cabeça, sem entender que não podia passar para o outro lado.

Outra vez, ao procurar uma ferramenta no armário da churrasqueira, lá estava o gatinho preto. Fez um som de ftissss para mim, levantando as garrinhas e mostrando as unhas, como se fosse me atacar. Eu não conhecia nada de gato e me assustei. Expulsei ele de lá. Expulsei ele de casa. Que se virasse. Eu não ia cuidar daquilo. Mas achei uma atitude muito passiva, a minha, de largar o bichinho ao léu. Sumiu, não vi mais ele.

Enquanto eu não sabia o que fazer da situação, a gata continuava subindo no capô e riscando a pintura do carro com suas unhas. Ali se transformou em sua casa. Logo começou a receber a visita de vários gatos na garagem de casa, que subiam no capô do carro, também. Quando eu me aproximava para espantá-los, corriam para baixo do carro. Eu espantava eles dali, mas logo retornavam, fazendo aqueles sons maluco deles.

Minha mulher voltou, a gente foi no pet shop comprar remédio e ração para o cãozinho dela e eu vi que tinha um remédio floral que acalmava gata quando entrava no cio. Comprei aquilo para fazer um teste, comecei a colocar na água e pareceu que havia dado resultado. Parecer não é ser, todavia. Rapidamente a teta dela começou a inchar, a barriga a crescer e ela foi ficando mais dengosa, se aproximando mais da gente, e mais faminta, também.

Passaram-se alguns dias e ela apareceu sangrando na boca, de um chute ou paulada, que algum vizinho deu. Talvez seja o mesmo que deu sumiço nos gatinhos, talvez outro, incomodado como eu, mas mais disposto a resolver seus problemas na porrada! O chão da garagem ficou vermelho. Ela, que estava gripada, espirrava e esguichava sangue, ao mesmo tempo! Nisso, minha mulher tinha voltado e nós fomos solidários com a gata. Levei a bichana ao veterinário, aproveitei para fazer exames de sangue, pegar receitas e, por sorte, não tinha nenhum osso quebrado ou função danificada. Minha preocupação maior era com a gestação. Apalpando, a veterinária achou que estava tudo bem, pediu uma ultrassonografia que eu não fiz e apostou que devia ter pelo menos uns 5 gatinhos na barriga da bicha.

Até aquele momento eu não sabia nem como fazer para colocar e tirar o gato da caixa. Foi até meio constrangedor quando a veterinária pediu para colocar a bichinha sobre a mesa e eu não sabia o que fazer. Logo, porém, perdi o medo e comecei a agir. Agora, eu já não estava mais ‘só de olho’, eu estava fazendo o que tinha de ser feito. Para quem nunca teve um gato na vida, até que deu tudo certo.

Trouxe a gatinha para casa, ajeitei um lugar coberto e arejado no quintal para ela, dei comida, remédio, vermífugo e ficamos – eu, a mulher e a gata – esperando o nascimento dos bichanos. Logo perdi o medo dela e ela perdeu o medo de mim. Continuava uma gata assustada, como a conheci, mas não se mostrou, em nenhum momento nem arisca, traiçoeira ou perigosa. Ao contrário, era amorosa, porém, sem intimidades. Nada de colo!

No dia 06 de junho de 2015 o trabalho de parto começou umas 8 horas da manhã e foi terminar lá pelas 7, 8 horas da noite. Não nasceram 5, como previu a veterinária, mas 7 gatinhos! Minha mulher e eu nos sentimos privilegiados de ajudar no parto da gata e, apesar de nunca ter feito nada parecido com isso, tudo correu bem.

Eu fui me desesperar depois, pensando nos cuidados que eu deveria ter, com 8 gatos em casa. Rapidamente comecei a pensar em uma estratégia de doação, embora os filhotes mal abrissem o olho, ainda. Fiz página na internet, pedi ajuda aos amigos e quando apareceu a primeira pessoa interessada, eu fiquei pensando que estava me adiantando em uma coisa que ainda não era hora para ser feita e achei melhor esperar um pouco, enquanto postava fotos da ninhada na internet.

Com 30, 35 dias de vida, vendo que eram muitos e pareciam sempre com fome, comecei a dar ração para os pequenos. Devoraram. Resolvi, além disso, que era hora de começar a me livrar da prole da gata. Uma gatinha da mesma cor dela foi levada, em adoção. Gostei e não gostei. Chamei minha mulher para conversar e disse a ela que achei minha atitude muito autoritária, porque a gata ainda dava um pouco de leite aos filhotes e eu cortei a relação entre eles. Como eram 7 gatinhos, no entanto, me consolei com a ideia de que eu tinha que ir fazendo as doações assim que aparecessem pessoas interessadas em adotá-los, porque pensei que seria difícil encontrar pessoas interessadas em possuir gatos em suas casas. O problema é que eu não combinei de tirar os filhos da gata com ela, que não parava de reclamar a ausência da filha. Fazia uns sons de quem estava chamando pela gatinha que foi embora, um som de lamento, mexendo com a (falta de) consciência da minha decisão precipitada.

Além disso, a gente ficou desconfiado que ela estava entrando no cio novamente, porque começou a roçar nossas pernas com o rabo levantado, fazendo outros sons esquisitos. Eu diria, pela minha intuição felina (!), que eram sons sensuais. Começou a sair de noite pela vizinhança, deixando os gatinhos sós, cada vez demorando um pouco mais. Os gatões começando a rondar a área, de novo.

Fiquei em dúvida sobre o que fazer, marquei de ir na clínica veterinária para castrar, desmarquei, fui na loja de animais me orientar sobre o que fazer e acabei comprando um anticoncepcional para tentar contornar a questão, enquanto decidia o que fazer. Como os gatinhos ainda estavam se agarrando ao peito dela, achei melhor não castrar naquela semana. Ao mesmo tempo, fiquei achando que aqueles comprimidos podiam fazer mal a ela e aos gatinhos, mas preferia isso a ter que ver a gata prenha, novamente, com mais 7 bichinhos no bucho.

Minha mulher queria avisar o síndico do condomínio que iríamos processar quem batesse em animal porque, ela disse, maltratar animal também é crime, mas eu protelei e só consegui comprar uma coleira para colocar no pescoço dela, dando um ar de majestade para a nossa gata mãe. Dava satisfação ver a gata sentada no chão da cozinha, depois de lamber com cuidado seus rebentos, olhando para a gente, abanando o rabo lentamente ‘pra lá e pra cá’, senhora da situação. Não era mais a gata feia, magra, pidona e arisca de outros tempos. Era a própria rainha dos pelos viçosos posando para foto!

Sexta feira passada, porém, eu acordei com a gata miando. Saco! Eu pensei. Querendo comida. Levantei e fui dar a comida dela. Não aceitou. Comecei a fazer outra coisa na cozinha e ela continuou miando, pedindo comida. Comecei a perder a paciência. Dei a comida do cachorro e ela avançou na comida dele. Não deixei ela pegar. Então virou uma briga de teimosos: eu querendo que ela comesse a ração dela e ela querendo comer a comida do cachorro. Fui perdendo a paciência. Toquei ela da cozinha uma, duas, três vezes. Quatro ou cinco. Cada vez batendo o pé mais forte e ordenando, como um general: FORA! Depois fechei a cozinha e ela ficou lá, miando de fome, me olhando com olhos enormes, pelo vidro da porta. Deixei a comida do cachorro para o lado de dentro da casa, fui descansar um pouco e quando acordei, ela não estava em casa. Normal.

As horas passaram e eu fui ficando preocupado. De hora em hora eu ia no quintal ver se ela estava com os gatinhos. E, nada. Liguei para a vizinha que me disse que a gata havia passado por lá, comido a ração do gato dela, pulado em cima da mesa para roubar alguma coisa e depois foi embora. Corri o condomínio todo. E, nada. Voltei para a casa da vizinha e a namorada dela me perguntou se eu tinha ido à rua, procurar. Demorei um pouquinho, hesitei, pensei de novo, voltei para casa, coloquei uma calça e saí atrás da bichinha, querendo não só encontrá-la, mas pedir perdão pela impaciência que tive com ela. Não fui muito longe. Quero dizer, mal abri o portão de casa que dá para a rua, melhor, para a rodovia – já que eu moro na periferia da cidade e na frente deserta de minha casa tem um asfalto onde os motoristas passam correndo de carro – vi um montículo de alguma coisa no chão e tremi. Cheguei perto daquilo. Era um monte de carne espalhada pelo asfalto preto. Minha gata! Entrei no condomínio de novo e voltei à casa das vizinhas, chateado, como se eu fosse um menino e tivesse arrumado uma briga na rua e apanhado. Não podia chorar, porque me sentia culpado da própria confusão que eu tinha armado.

Imediatamente me arrumaram um pedaço de pano, pá e sacos plásticos. Uma delas veio comigo, para ajudar a retirar o corpo do meio da pista. O corpinho da gata ainda estava quente. Senti pelo plástico onde enfiei o que sobrou dela. Não havia sinal de freada. E eu deduzi eu ela devia estar voltando para casa e não saindo para a rua, já que o atropelamento foi perto do calçamento, do nosso lado.

Agora fico lembrando de algumas passagens, muito frescas ainda na memória. Por exemplo, esperando a gente na porta, quando voltávamos para casa. Acompanhando a gente no passeio com o cachorro, pelo condomínio, com aquele rabão para cima. Era engraçado. Ou roçando minha perna, enquanto estava distraído, preocupado com as vicissitudes da vida, pensando coisas muito sérias e sem saída. Dava um alívio saber que o mundo não era só os meus problemas. De certa forma, era como se ela me relembrasse, nesses momentos, de que a gente não pode perder nossos contatos, nossas relações com os outros, com o mundo, em carne, pelo, pele e amor.

Meu remorso é porque eu doei uma filhota antes dela se desmamar completamente. E, além de não respeitar o choro dela, ainda fiquei incomodado porque ela miou muito, um dia ou dois, ou três, no máximo. E eu maldisse a situação. E aconteceu o que aconteceu. E ela não mia mais. Nem deita para dar leite aos gatinhos. Nem nos espera na porta de casa quando chegamos da rua. Agora percebo, na falta dela, o meu coração triste e pequeno. Talvez ela esteja sorrindo com esse texto bobo, lá no céu dos gatinhos, me acenando ao longe e lentamente com seu rabo, me ensinando sei lá o quê sobre paciência, tolerância e impulsividade. Dei o que eu sabia que podia dar a ela, e o que eu não sabia que podia dar, também: um pouco de ração, atenção e carinho. Me pego surpreso, agora, não porque eu dei isso a ela, mas porque foi ela quem me deu a oportunidade para que eu desse a mim mesmo o direito de ter amor e saudades. “É só um bicho”, a gente pensa. Mas não é o bicho. É a possibilidade de ver, em si mesmo, os rastros de humanidade que ainda somos capazes de cultivar. Só por isso eu já fico grato por ter sido ‘adotado’ por ela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário